Por Deborah Prates
De que humanidade falamos? Nesses tempos em que concluímos ser a solidariedade o sentimento norteador das nossas ações percebo, enquanto mulher com deficiência, o quanto o COVID-19 não conseguiu instigar a empatia da sociedade relativamente a esse contingente populacional.
A ciência já deixou inequívoco que o afastamento social é a estratégia para que os seres humanos consigam vencer e superar o desconhecido. Desse modo, as pessoas, às duras penas, estão se unindo para lutar contra o Covid-19. A quarentena se faz imprescindível para que não haja o colapso do sistema de saúde. Muitas situações estão sendo dirimidas de modo virtual; já outras ainda necessitam ser enfrentadas de modo presencial, como é o caso dos nossos semelhantes que estão na linha de frente dos trabalhos entendidos como essenciais para a sobrevivência da coletividade. A solidariedade vem sendo exercitada para várias situações, como, por ilustração, compras diversas feitas por vizinhos jovens para atender os vizinhos idosos.
No entanto, existem situações em que há a necessidade do trânsito de pessoas pelas ruas. Por ilustração, ir ao hospital, ao posto de saúde para tomar a vacina contra a gripe H1N1, etc. Em todos esses deslocamentos há que ser observado o distanciamento entre as pessoas por conta do corona. Porém, a pessoa com deficiência, em inúmeras vezes, precisa do contato com o próximo para vencer os vários obstáculos que a sociedade coloca a sua frente e é nessa hora que o apagamento social fala mais alto, já que a coletividade nega o outro diferente, no caso com deficiência.
Nesse mundo competitivo em que as pessoas são vistas como mercadorias, não há espaço para o corpo que foge ao padrão estabelecido pelo capitalismo. Há uma ligação com a incapacidade da produção acelerada, a qual gera lucro. A hegemonia estética não pode ser quebrada, de modo que um ser que habita um corpo com deficiência está fadado ao abandono, ao apagamento social pelo temor dos seus iguais sem deficiência com ele se parecer.
A força do capitalismo determinou quais os corpos que poderiam transitar livremente pelas cidades. Prova dessa afirmação está no acabamento das bordas das calçadas realizadas na modalidade de meios-fios. Ora, corpos com deficiência, corpos com limitação temporária, corpos idosos e tantos mais foram descartados do convívio nas cidades. Essa leitura é nítida! Claro que uma cidade democrática e republicana, no lugar dos meios-fios, teria bordas em suaves rampas. Simples assim. Nessa lógica é que o corpo com deficiência – que foge a fôrma padrão – foi impedido de exercer, com plenitude, a sua cidadania neste surto. Isto posto, diante da tragédia social e não pessoal, sobreposta a atual pandemia, é que esse grupo da população irá precisar de ajuda presencial, de sorte que pergunto ao ser leitor: Se você visse alguma pessoa em cadeira de rodas com dificuldade para descer um meio-fio muito alto, ou uma pessoa cega para fazer uma perigosa travessia de rua você a ajudaria? Em caso positivo, de que maneira? Como ambas as partes poderiam estar seguras do contágio?
Visível, pois, que a deficiência potencializa a vulnerabilidade desse contingente populacional em tempos de coronavírus por precisarem do contato pessoal. A vacinação para ele deveria ser feita a domicílio como é disponibilizada para os idosos e outros grupos igualmente vulneráveis e sem burocracia. Esta dá espaço para a morte.
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A ONU já deu o alerta para que a população mundial perceba essas pessoas nesse atual contexto, bem como as conscientizou em diversos aspectos dessa nova e triste experiência. Por ilustração, sinalizou a forma como os seus instrumentos de locomoção devem ser higienizados. As bengalas devem ser lavadas com água e sabão ou álcool em gel, os óculos igualmente, etc. No contraponto, as autoridades não lhes disponibilizam sabão, álcool em gel, luvas, máscaras e outros. Alertou, ainda, de que maneira a solidariedade em relação a elas deve ser prestada no campo tecnológico. Nesse mote as informações devem estar acessíveis para todo tipo de deficiência. Sem dúvida, conscientizar a todos os seres humanos, indistintamente, é urgente. Mas, todo mundo percebeu que estamos à deriva, tanto as pessoas com e sem deficiência. Vivemos um pandemônio na pandemia.
Todavia, os profissionais de saúde, na sua maioria esmagadora, não sabem lidar com essas pessoas. Desconhecem as peculiaridades de cada deficiência, sendo que muitas acarretam o comprometimento dos pulmões, valendo dizer que se agravam com o COVID-19. Logo, é imprescindível que sejam testadas, bem como sejam realizados exames de imagens. Jamais poderiam ser devolvidas para casa com a recomendação de que esperem agravar as situações.
Nesse atual panorama nervoso, complexo, no qual todos os técnicos estão esgotados física e emocionalmente, em que os acompanhantes são proibidos de permanecerem no acolhimento destas, a situação piora e se desumaniza. Tudo porque os responsáveis não trabalharam o conhecimento desses seres humanos, os quais permanecem invisíveis em abril de 2020, de sorte que os respiradores são negados para eles. Imagine uma pessoa surda que usa a LIBRAS para se comunicar em um hospital sem intérprete; ou outra tetraplégica sem a sua cuidadora; ou outra cega sem acompanhante, etc. Não podemos nos deixar tratar feito gados indo para o corredor da morte, por administradores egoístas e inescrupulosos. Cristalino, pois, que as vidas não valem o mesmo.
Os gestores são os culpados por esse patético quadro, vez não terem formação em direitos humanos. Esse tipo de hostilidade é o resultado da ignorância em relação ao outro. É preciso enfrentar o pluralismo para falar no universal, de jeito que em horas como as que estamos experimentando não sejam escolhidos quais os seres humanos que merecem viver. Caso contrário, permaneceremos sublinhando a desigualdade.
Sinceramente desejo que vençamos o COVID-19 e que os sobreviventes dessa desgraça consigam, minimamente, organizar uma pauta social na qual as pessoas com deficiência tenham o seu lugar. Precisamos sair dessa pandemia revendo o nosso convívio social. Integramos todos a mesma espécie. Por isso devemos enxergar uns aos outros como iguais. A ideia trazida pelo patriarcado de que uns seres humanos são superiores a outros não tem mais espaço. Presentemente está patente que não estamos no mesmo barco como algumas vozes, filosoficamente, insistem em afirmar. Não. Concebo a ideia de que podemos estar no mesmo mar. Porém, tem pessoas que flutuam em um transatlântico, já outras em navios menores, ou em iates, balsas, jangadas, botes e, por fim agarradas em troncos e/ou galhos que flutuam. Com certeza as pessoas com deficiência têm as suas mãos agarradas nestes últimos e serão as primeiras a morrerem na primeira onda mais forte. Estas vivem, em sua grande maioria, nos bolsões de extrema pobreza. Os oprimidos carecem de unir as suas vozes para que ecoem e sejam ouvidas. Quebrar o silêncio se faz preciso e com urgência. Ninguém é superior a ninguém em decorrência dos estereótipos diversos.
De que humanidade falamos? Termino estas breves reflexões com outra da filósofa Simone de Beauvoir. “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher“. Parafraseio essa lógica para dizer: ninguém nasce humano: torna-se humano.
Deborah Prates é Advogada, pós-graduada em Gênero e Direito pela EMERJ, pós-graduanda em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela EMERJ, presidente da Comissão da Mulher do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, autora do livro “Acessibilidade Atitudinal” – Gramma 2015, feminista e ativista da causa da pessoa com deficiência.